Ficções Nada Realistas
Descrição
Uma ilha ligada ao continente por um istmo, construído pelos próprios moradores do lugar. Moradores que foram ali viver na tentativa de edificar uma sociedade alternativa, com costumes e código de conduta comuns para que a vida se tornasse melhor, longe do consumismo do mundo "lá do outro lado", o continente (símbolo de toda negatividade). Esse mundo ideal, essa utopia, é o que, a princípio, se espera no conto "Istmo (ou triste fim de Hitlodeu)", que abre a coletânea "Ficções nada realistas", de Paulo Sandrini.
Mas a narrativa, de modo irônico, cruel e por vezes bem-humorado, aponta para o contrário de um mundo utópico e carregado de positividade, pois, a partir da voz do narrador-personagem, vamos descobrindo uma sociedade hipócrita a sabotar os próprias regras em nome do consumo, que ocorre quando seus habitantes vão em busca de produtos e outras ofertas que se acham no continente. Vemos ainda uma sociedade silenciada por um líder opressor, além da violência contra o meio-ambiente e os próprios semelhantes.
A metáfora da impossibilidade da utopia surge com força no destino do animal Hitlodeu (referência a Rafael Hitlodeu, do livro "Utopia"). Utopia que na verdade é uma distopia. Distopia que é a marca principal desta coletânea. "Braço controlado", o texto mais longo, narra a história de um personagem com deficiência física, impossibilitado de trabalhar, até ser convocado pelo Estado para voltar ao mundo do trabalho. Ele recebe, um belo dia, um braço artificial, que será instalado em seu corpo. A partir daí, surge um universo de trabalho que, de começo, se mostra tranquilo e agradável, para depois tornar-se um verdadeiro terror na vida dos personagens. O lugar torna-se uma prisão, local de controle e tortura. Mais uma vez o mundo ideal desmorona e cede lugar ao absurdo para tratar de uma dura realidade (em ficção); realidade nada impossível no mundo aqui fora (fora da ficção).
Outro conto é "Nano". A história do robozinho, produto da nanotecnologia, que entra nos corpos das pessoas para curar algumas doenças. De projeto milionário, torna-se um enorme problema ao desaparecer (como que ganhando vida própria) no corpo do paciente-narrador, fazendo com que este tenha sua vida ameaçada. Já no conto que encerra o livro, "Em frente aos portões de Dite", temos uma metrópole cercada por "muralhas de ferro", como a Dite (metrópole do Inferno na Divina Comédia) de Dante. A multidão de miseráveis do lado de fora faz de tudo para entrar na cidade, mas não é possível, ela está reservada "aos escolhidos pelo sistema". O castigo para essa multidão, como na obra de Dante, é o eterno sofrimento.
"Ficções nada realistas", tenciona, assim, trazer ao leitor um universo que, mesmo marcado por certa desesperança, estimule o contato com a chamada literatura de invenção (do espaço, dos eventos estranhos). Invenção que também nos leva à fantasia, ao jogo com a linguagem e ao mesmo tempo nos faz refletir sobre a vida e suas mais "inusitadas" possibilidades.
Autor
Paulo Sandrini